A secretaria estadual da educação, juventude e esportes do Tocantins anunciou, no último dia 24 de maio, que o tradicional Colégio João XXIII, de Colinas do Tocantins, se tornará a 10ª unidade de ensino da Polícia Militar do Tocantins – CPM. Colégios públicos administrados pela Polícia Militar não é uma jabuticaba tocantinense. A questão está no país inteiro. E cresce com rapidez.
O jornal Folha de São Paulo, com base em dados de 2015, informa que existem no Brasil “93 instituições de ensino geridas pelas polícias militares estaduais”. O Estado de Goiás lidera os números com 26 escolas militares, Minas Gerais vem em segundo, com 22, e a Bahia, em terceiro, com 13 colégios. O anúncio da décima unidade coloca o Tocantins na linha de frente dessa política no Brasil, entre os Estados que mais apostam na criação de CPMs.
Esse avanço, naturalmente, é controverso e divide opiniões. Há defensores animados, entre eles, muitos pais; e críticos fervorosos, na maioria professores e estudiosos da educação. Em meio ao “tiroteio” das discussões, o modelo avança sobre a seara civil.
O anúncio da abertura da 10ª unidade CPM no Tocantins nos leva a discutir as características dessa proposta. Integro-me aos debates, com brevíssimas contribuições, sobre três elementos fundamentais que cercam a experiência CPM em andamento no Tocantins: a questão da filosofia educacional desses colégios, da gestão/manutenção financeira dessas unidades e dos seus resultados, especialmente em avaliações externas, quase sempre apresentadas como sinais da qualidade de ensino.
Para Rafael José da Costa Santos, que dedicou seu mestrado a estudar a militarização da escola pública em Goiás, Estado campeão na implantação de CPM, e cujos resultados, em grande medida, se aplicam à experiência tocantinense, afirma que a inspiração para a abertura de CPM vem dos colégios militares das forças armadas brasileiras. Ele explica que “é a própria estrutura interna e o modo de funcionamento dos CPMs que os assemelham aos Colégios Militares” das forças armadas, “formando uma matriz comum de instrução de sujeitos militarizados”. Mas esclarece, porém, que os CMs são instituições com “intenções de formar estudantes para a carreira militar”, enquanto os CPMs “propõe ensino militarizado, mas que não são destinados nem para formação de militares e nem de policiais” (SANTOS, 2016, p. 46). Ainda no entendimento de Santos (2016), o objetivo dos colégios militares da PM seriam, então, implantar “valores e práticas militares no cotidiano e na formação de civis” (SANTOS, 2016, p. 7). Para tanto, a disciplina e a hierarquia serem fundamentos dessa proposta de educação.
Disciplina e respeito à hierarquia são pilares da vida militar. Numa educação desse tipo esses elementos são profundamente exercitados. Contudo, às vezes esquecemos, que disciplina não é uma exclusividade do espaço militar. Ter disciplina é condição básica para que qualquer processo de aprendizagem se realize, ancorada no exercício da atenção, da repetição, do compromisso. Por isso mesmo, disciplina (deve) está presente em todas as atividades humanas, no esporte, no trabalho, na dança e… na educação.
Obter disciplina dos educandos num ambiente militar, fortemente marcado pela força da hierarquia, na qual prevalece uma relação de profunda desigualdade de poderes, instituída e reconhecida pela patente, é, digamos, mais fácil de ser alcançada do que num ambiente não militar, no qual prevalece, em tese, a igualdade entre os indivíduos. No ambiente escolar civil, por exemplo, uma prerrogativa básica é a igualdade, sendo que a autoridade se exerce referenciada mais a elementos subjetivos como experiência e saber. A desobediência, por certo, tem mais chance de ocorrer porque os recursos de autoridade são mais fluidos. Na escola militar, a disciplina é algo objetivo. Na civil, há elementos de subjetividade, no qual a autoridade, para ser exercida, carece de (muito) diálogo, exemplo, participação.
Colégios militares costumam receber elogios pelo cultivo da disciplina e da autoridade em seus espaços e, ainda, por sua suposta organização e respeito. Elementos não exclusivamente militares, mas a elas relacionadas como algo que se efetiva. Nas escolas civis, essas questões seriam, digamos, frouxas. Porém, o que dizem ser frouxidão é, na realidade, a base da proposta educacional, na qual o ensino se realiza pautado na horizontalidade das relações, que aponta para igualdade entre os indivíduos, a preservação da liberdade de pensamento, criatividade e questionamento.
Ao centrar sua atuação na disciplina e respeito à hierarquia, os CPMs se tornam um instrumento efetivo na tarefa de fazer “funcionar técnicas e mecanismos de controle que pretendem formar determinada individualidade, proporcionando formatação de subjetividades para a doutrina militar e para a obediência, a utilidade e a docilidade” (SANTOS, 2016, p. 92).
No que tange à questão da gestão dos CPMs, é importante frisar que escolas comandadas pela polícia militar são, tecnicamente, escolas públicas, o que não significa que sejam democráticas. Nesse modelo, a PM entra com a gestão da unidade, a Secretaria Estadual de Educação (SEDUC) com o restante, custeio, professores civis que permanecem no quadro de funcionários, estrutura física e equipamentos. A gestão dessas unidades é responsabilidade da PM, mas as despesas continuam com a SEDUC. Não é exagero perguntar se não é um desserviço à rede pública civil de ensino, o Estado entregar à Polícia Militar condições materiais e humanas para desenvolver determinada filosofia educacional para, ao final, a corporação recolher determinados resultados que, na maioria das vezes, é interpretado pelo público como sendo mérito da PM ou de sua proposta educacional.
A gestão dos CPMs, na visão de Santos (2016) é “centralizadora e não democrática”. Conforme esse estudioso do assunto, isso ocorre porque a “estrutura das unidades escolares é fundamentada na hierarquia e na subordinação, assim como funciona na corporação da PM”. Nessas unidades, a cadeia de comando obedece à hierarquia, de modo que, a “função e competência” dos agentes de menor patente “deve estar subordinada às patentes mais altas”. Apesar de aceitar a presença de civis, nos CPMs os componentes militares assumem os principais cargos, monopolizam a “função de administrar e coordenar majoritariamente as atividades”, restando “aos profissionais da educação obedecer às ordens e exercer suas funções de ensinar” (SANTOS, 2016, p. 54-55).
Parece claro que os colégios militares se expandem, no Brasil e no Tocantins, aliado à forte insegurança vividas pelas pessoas nas cidades, misturado com a expectativa dos pais, de que lá seus filhos estarão seguros e terão uma educação firme, capaz de impor regras e limites. Essas visões potencializam argumentos a favor da implantação de mais unidades. Não por acaso, as vozes a favor da instalação de mais CPMs, aumentam e se diversificam, sendo identificadas em pais de alunos, autoridades políticas, empresários e até de professores civis.
Por fim, é verdadeiro que escolas geridas pela Polícia Militar têm apresentado resultados consideráveis em provas e exames externos (ENEM, por exemplo). Tal sucesso, porém, talvez não se explique apenas por um “regimento pedagógico e regimento disciplinar próprio” que os CPMs, com orgulho, anunciam ter (REGIMENTO INTERNO, CPM III, p. 9). O “sucesso” dos CPMs, muito provavelmente, dialoga com o fato de reunirem, mediante avaliações de ingresso, autorizado por seu regimento, “debaixo dos olhos” da SEDUC, um público selecionado. Tal medida, aliada a outros elementos positivos, como zelo pelo rigor disciplinar somada a uma boa estrutura física e de equipamentos pedagógicos, favorece a obtenção de bons resultados em avaliações externas. É importante frisar que a maioria das escolas civis da rede pública não possuem dois desses importantes quesitos: a seleção de público e boa estrutura física e de equipamentos.
Não se está aqui a defender a seleção para ingresso na escola pública. Citamos essa característica como ítem diferenciador entre uma unidade de ensino civil e uma unidade militar. A rede regular, infinitamente maior, possuidora de unidades extremamente diferentes entre si, com condições estruturais bastante díspares, tem maior dificuldade em manter níveis elevados de resultados em avaliações externas. É por demais injusto comparar essas realidades, dado suas diferenças público, de estrutura e de proposta educacional.
Segundo o professor Rafael Saddi, da UFG, um CPM quando é instalado numa determinada localidade, inicia um processo de expulsão dos estudantes mais pobres. De acordo com o professor, em Goiás, com base em dados oferecidos pelos estudantes, à partir de questionários de preenchimento obrigatório para inscrição no ENEM, no ano de 2014, “somente 06 colégios estaduais apresentaram índice sócio-econômico ALTO”, sendo que “05 deles são colégios da polícia militar” (SADDI, 2015). Conforme Benevides e Soares (2017), “o perfil socioeconômico destas instituições é bastante elevado no Brasil inteiro”, sendo um dos principais motivos o “processo seletivo de ingresso de alunos nas escolas militares” (BENEVIDES E SOARES, 2017, p. 8).
Conclui-se que a criação e ampliação de colégios militares, no formato aplicado nos CPMs, não visam melhorar a educação pública. Seu objetivo é atender os interesses de determinados grupos sociais, que se identificam com esse modelo de ensino, e que buscam, mediante uma educação militarizada e elitista, mecanismos de distinção em relação às demais instituições públicas de ensino. Não por acaso, entre os princípios e objetivos do CPM, inscritos no seu regimento, está o de formar um estudante que possua “atributos morais e éticos que o destaque dos demais alunos da rede de ensino do Estado, tornando-se verdadeiro padrão de excelência” (REGIMENTO INTERNO, CPM III, p. 10).
Curioso que, para se tornar um espaço educacional de “excelência”, que forme e entregue à sociedade estudantes “diferenciados” daqueles oriundos das demais escolas públicas, o CPM “escolhe” as instituições que irá incorporar. As instituições “contempladas”, na maioria das vezes, recebem melhorias diversas antes da instalação do CPM, uma exigência da corporação de olho na manutenção de seu “padrão institucional”.
No caso de Colinas, o Colégio Estadual Lacerdino de Oliveira Campos chegou a ser anunciado. No entanto, o Colégio João XXIII acabou sendo o Colégio escolhido para receber o CPM X, sendo que, para o Lacerdino, foi anunciada pela SEDUC uma reforma de suas instalações com dinheiro do Banco Mundial. Os motivos que levaram à mudança não ficaram claros, tendo em vista que a instituição escolhida também passará por adequações estruturais.
O Colégio João XXIII é uma instituição tradicional em Colinas, ligada à Igreja Católica, teve sua fundação vinculada aos esforços da comunidade local e sua história se mistura com a origem e crescimento da própria cidade. Localizado na área central, o colégio possui bons índices em avaliações externas estaduais e nacionais, considerado por muitos como uma das melhores escolas públicas da região.
Nesses “tempos estranhos” em que, nas ruas se pede intervenção militar no país, devemos estar atentos para o significado do avanço da educação militarizada, claramente voltada para a formação de indivíduos obedientes à autoridade e admiradores dos valores militares. Não faz muito tempo, o estudante do João XXIII era estimulado a ser “portador da ciência e propagador da fé”, conforme preconiza o hino do colégio. Agora, sob as “bênçãos” de autoridades políticas, educacionais e eclesiásticas, ao estudante colinense, será oferecido o humilhante grito de “Direita Volver”.
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* É professor no Colégio Adolfo Bezerra de Menezes em Araguaína-TO. Mestrando em ensino de História (PROFHISTORIA) pela Universidade Federal do Tocantins – UFT. Foi professor no Colégio João XXIII entre 2005/2013.
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BENEVIDES, Alesandra de Araújo Benevides. SOARES, Ricardo Brito. Diferencial de desempenho das escolas militares: bons alunos ou boa escola?. (UFC – Campus de Sobral). 2017.
Hino do Colégio João XXIII de Colinas do Tocantins. https://www.youtube.com/watch?v=TzvvZc8xAL8
SADDI,Rafael.https://www.dm.com.br/cultura/2015/08/colegios-da-policia-militar-excluem-os-alunos-mais-pobres.html.
REGIMENTO INTERNO. CPM – UNIDADE III. 2018.
SANTOS, Rafael José da Costa. A militarização da Escola Pública em Goiás. GOIÂNIA. Pontifícia Universidade Católica de Goiás. 2016.
SILVA, Iltami R. da. Colégio militar em Araguaína: e a ideia de uniformizar corpos e mentes. 2016.