O Censo Demográfico 2022 destacou o crescimento da população evangélica no Brasil, especialmente em áreas urbanas vulneráveis, como favelas e comunidades. Esse fenômeno social se reflete em dinâmicas inesperadas, incluindo a associação da fé evangélica a facções criminosas, como no caso do Terceiro Comando Puro (TCP), no Rio de Janeiro.
O Complexo de Israel: O Tráfico e a Fé
O TCP, uma das facções mais poderosas do Rio, controla o chamado Complexo de Israel, formado por cinco comunidades da Zona Norte: Parada de Lucas, Cidade Alta, Pica-pau, Cinco Bocas e Vigário Geral. Desde 2016, esse território se tornou símbolo de uma curiosa fusão entre o tráfico de drogas e o fervor religioso evangélico.
O grupo se autodenomina a “Tropa de Aarão”, uma referência bíblica, e adota símbolos religiosos, como a Estrela de Davi e a bandeira de Israel, que enfeitam locais públicos, caixas d’água e até produtos ilegais, como pacotes de drogas. A mensagem, “Jesus é dono do lugar”, é frequentemente pichada em paredes, impondo uma identidade religiosa ao território.
Restrição às Religiões Afro-brasileiras
O domínio do TCP também tem impactos diretos nas práticas religiosas das comunidades. De acordo com a teóloga e pastora Vivian Costa, autora de Traficantes Evangélicos – Quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus (2023), casas de umbanda e candomblé têm sido alvo de destruição e incêndios.
“Tanto as manifestações no espaço público como no privado foram proibidas de existir nesses territórios”, afirma Costa.
Esse tipo de intolerância religiosa, antes restrito ao Rio de Janeiro, tem se espalhado para outras cidades brasileiras, como Fortaleza e Salvador. Nessas regiões, facções como o Comando Vermelho (CV) replicam ataques a terreiros, pichando mensagens como “CV abençoado” para afirmar seu domínio.
O Fenômeno dos “Traficrentes”
Pesquisadores apontam que o avanço dos “traficantes evangélicos”, ou “traficrentes”, é resultado de uma estratégia de legitimação social e ampliação de poder. Para a antropóloga Ana Paula Miranda, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), o uso da fé é tanto uma ferramenta de controle quanto uma forma de conquistar apoio local.
“Esse fenômeno reflete a transformação do Brasil em um país majoritariamente evangélico. O discurso religioso se torna um instrumento para fortalecer o domínio das facções”, explica Miranda.
Uma Realidade Nacional
Embora o fenômeno tenha ganhado notoriedade no Complexo de Israel, a antropóloga destaca que não se trata de um caso isolado. Em Fortaleza, Salvador e outras grandes cidades, ações semelhantes mostram que o tráfico evangélico está se tornando um problema nacional, afetando não só a segurança pública, mas também a liberdade religiosa.
Conflito entre Fé e Crime
Para muitos teólogos, a associação entre o tráfico de drogas e a fé evangélica gera controvérsia. Alguns veem o fenômeno como uma apropriação estratégica de símbolos religiosos para conquistar legitimidade, enquanto outros argumentam que ele é reflexo do crescimento natural da fé evangélica em todas as esferas da sociedade, inclusive em territórios controlados pelo tráfico.
Impactos Sociais e Religiosos
O crescimento da população evangélica, evidenciado pelo Censo Demográfico 2022, é um retrato de uma transformação maior que envolve política, cultura e religião no Brasil. O avanço de grupos como o TCP, sob a bandeira da fé, levanta questões sobre intolerância religiosa, controle social e os limites entre espiritualidade e criminalidade.
Esse cenário complexo reflete não apenas os desafios de segurança pública, mas também a necessidade de garantir a liberdade de expressão religiosa em um país que, embora diverso, enfrenta tensões crescentes entre diferentes grupos e crenças.
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