O debate sobre anistia voltou ao centro das discussões no Congresso Nacional, nas redes sociais e nos meios jurídicos. A retomada do tema se dá num contexto de crescente polarização política, judicialização de discursos e reinterpretação dos marcos legais que definem o que é ou não perdoável em termos de crimes políticos, ideológicos e de ataque ao Estado de Direito.
Desde o fim da ditadura militar em 1985, o Brasil convive com as cicatrizes abertas da Lei da Anistia de 1979, que permitiu o retorno de exilados, mas também blindou agentes do regime de punições por crimes contra a humanidade. Agora, em pleno regime democrático, o Congresso discute novas propostas de anistia — algumas direcionadas a manifestantes envolvidos em atos golpistas e parlamentares investigados por crimes de incitação e subversão da ordem institucional.
A iniciativa reacende um dilema recorrente: até que ponto a anistia pode ser instrumento de pacificação e, em que medida, ela se torna uma ameaça à democracia e ao próprio sistema de Justiça?
Propostas em tramitação reacendem alerta sobre banalização
Ao menos três projetos que envolvem anistia a crimes políticos tramitam atualmente no Congresso. O mais recente, de autoria de um grupo de deputados da base conservadora, propõe perdoar penalmente os envolvidos nos atos antidemocráticos ocorridos em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023. A justificativa central seria o “caráter ideológico das manifestações” e o argumento de que muitos dos réus estariam sendo vítimas de “perseguição política”.
O tema ganhou força após declarações de ministros e parlamentares influentes sugerindo que o país precisa “virar a página”. Para setores mais moderados, a anistia seria um gesto de reconciliação nacional. Mas a proposta enfrenta forte resistência.
Segundo a jurista Lúcia Araújo, especialista em Direito Constitucional, a anistia “não pode ser um salvo-conduto para crimes contra o Estado de Direito”. Para ela, o perdão judicial, quando descolado dos princípios de justiça e responsabilidade, pode representar um perigoso retrocesso. “Não se pode normalizar ataques a instituições democráticas com base em acordos políticos”, afirma.
O que diz a legislação brasileira sobre anistia
A Constituição Federal de 1988 não proíbe a anistia, mas condiciona sua aplicação aos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. A jurisprudência brasileira, contudo, é ambígua. A Lei da Anistia de 1979, ainda em vigor, foi considerada válida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, apesar de duras críticas de organismos internacionais como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A aplicação do instituto, portanto, está sujeita a interpretações que variam conforme a conjuntura política e o entendimento dos magistrados. O professor Fernando Almeida, doutor em Filosofia do Direito, avalia que o uso recorrente da anistia “revela uma crise de legitimidade na política brasileira”.
“Em vez de fortalecer as instituições, muitos agentes políticos recorrem à anistia como ferramenta de autoproteção. Isso é sintomático de um sistema onde a responsabilização é vista como instabilidade, quando deveria ser vista como justiça”, analisa.
Impactos para a democracia e o Judiciário
O principal argumento contrário à anistia generalizada está no impacto que ela pode causar à credibilidade do sistema de Justiça. O Supremo Tribunal Federal tem enfrentado duras críticas tanto por sua atuação firme em defesa da Constituição quanto por acusações de politização.
A possível anistia aos condenados por crimes contra o Estado — como tentativa de golpe, incitação à violência, uso de financiamento irregular para atos antidemocráticos e ataques a prédios públicos — é vista por especialistas como um precedente perigoso.
A socióloga e analista política Helena Moura afirma que “a concessão de perdão a criminosos políticos em nome da estabilidade pode, paradoxalmente, alimentar a instabilidade”. Segundo ela, os dados históricos mostram que anistias mal formuladas, como as concedidas durante e após ditaduras na América Latina, tendem a gerar impunidade e novos ciclos de violência.
“É como uma válvula de escape institucional. Em vez de resolver os conflitos por meio do devido processo legal, resolve-se com apagamento seletivo da memória institucional”, aponta.
Sociedade civil e memória histórica
Organizações de defesa da democracia, familiares de vítimas da ditadura e entidades jurídicas têm se manifestado contra o uso político da anistia. Em nota conjunta, 47 instituições nacionais divulgaram um manifesto pedindo que o Congresso respeite os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, especialmente os que vedam anistia a crimes contra os direitos humanos.
O advogado criminalista Renato Garcia reforça que a anistia não pode ser um instrumento de negação da história. “Quando o Estado concede perdão sem responsabilização, ele envia uma mensagem de tolerância à violência institucional. E isso, no longo prazo, mina os pilares do próprio Estado Democrático”, observa.
Entre o perdão e a justiça
A redemocratização brasileira ainda é um processo em curso, marcado por idas e vindas, avanços e tensões. A anistia, ao invés de ser tratada como ferramenta de reconciliação automática, precisa ser debatida com profundidade, critérios jurídicos consistentes e responsabilidade ética.
As propostas atuais levantam mais dúvidas do que soluções. Ao colocar em xeque o equilíbrio entre Justiça e perdão, o país enfrenta uma encruzilhada institucional que exige maturidade política, diálogo com a sociedade e compromisso com a memória nacional.
Mais do que uma decisão legislativa, o debate sobre anistia é um teste à solidez da democracia brasileira.
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