No Brasil, bonecas hiper-realistas conquistam espaço entre adultos que as tratam como filhos — fenômeno levanta questionamentos sobre saúde mental, políticas públicas e os limites do afeto
Por Fernanda Cappellesso – Para o Diário Tocantinense
Elas têm nome, enxoval, recebem vacina simbólica, passeiam de carrinho e vão ao pediatra. Não choram, mas são cuidadas como se fossem bebês reais. O fenômeno dos bebês reborn — bonecas ultrarrealistas que simulam recém-nascidos — ultrapassou o universo dos colecionadores e virou pauta de saúde mental, projetos de lei e debates públicos.
De um lado, o mercado floresce com força nas redes sociais, especialmente entre mulheres adultas que encontram nos reborns conforto afetivo, alívio emocional ou uma forma de expressar a maternidade fora dos padrões. De outro, médicos e psicólogos relatam casos extremos de mulheres que procuram atendimento para as bonecas em postos de saúde, pedem carteira de vacinação e tentam acessar benefícios públicos, como vaga em creche ou transporte gratuito.
A linha entre afeto simbólico e transtorno psicológico, segundo os especialistas, é cada vez mais tênue — e merece atenção.
A expansão do mercado: um nicho que virou febre
O primeiro bebê reborn nasceu nos Estados Unidos, nos anos 1990, criado por artistas plásticos com o objetivo de reproduzir com fidelidade a anatomia de um recém-nascido. No Brasil, o movimento começou entre colecionadores, mas se tornou fenômeno de consumo afetivo, especialmente a partir da pandemia de Covid-19.
Hoje, as redes sociais são repletas de perfis dedicados às “mamães de reborn”, que postam fotos dos bonecos em berços, em shoppings ou em festas. Um vídeo recente com mais de 2 milhões de visualizações no TikTok mostra uma mulher dando banho em sua boneca e depois a embalando com a legenda: “ninguém entende o amor que sinto por ela.”
Márcia Assaad, artesã há dez anos e uma das principais fabricantes do país, confirma a explosão de pedidos.
— Antes, era um hobby. Hoje, muitas compram como se estivessem completando um ciclo de maternidade. Algumas perderam filhos, outras nunca puderam engravidar. Cada encomenda tem uma história. Já tive cliente que fez chá de bebê e até parto simbólico — relata.
O valor de um bebê reborn pode ultrapassar R$ 8 mil. Quanto mais realista — com cabelos implantados fio a fio, sistema de respiração artificial, som de batimento cardíaco — mais caro.
Entre o luto e a dissociação da realidade
O uso terapêutico das bonecas é reconhecido por parte da comunidade médica, sobretudo em casos de luto perinatal, perdas gestacionais ou em idosos com Alzheimer. A presença do reborn pode trazer conforto, criar rotina, estabilizar emoções e reduzir a ansiedade.
Mas o alerta se acende quando o apego ultrapassa a função simbólica.
Dra. Amanda Caldas, psiquiatra, relata o caso de uma mulher de 34 anos que compareceu ao ambulatório exigindo atendimento pediátrico para sua boneca reborn.
— Ela pedia que fizéssemos exames de rotina na boneca e aplicássemos vitamina D. Estava em surto dissociativo. Acreditava realmente que era mãe. Tinha feito até registro civil falso. Precisou de internação psiquiátrica — afirma.
Para a psicóloga Ana Luísa Toledo, o fenômeno não é, em si, uma patologia, mas pode se tornar perigoso dependendo do contexto.
— O problema não é o reborn, mas a ausência de suporte emocional real. O boneco vira uma fuga. Quando a mulher se isola, rompe laços sociais e organiza sua vida em função da boneca, há um desequilíbrio claro. É uma tentativa de preenchimento de vazios psíquicos profundos — explica.
Ana Luísa diz já ter atendido pacientes em sofrimento por “sentirem culpa de deixar o reborn sozinho em casa” ou que manifestam ciúmes quando outras pessoas tocam na boneca.
Atendimento no SUS, denúncias e projetos de lei
Com o crescimento do fenômeno, postos de saúde, creches e até conselhos tutelares têm relatado situações inusitadas e preocupantes. Há registros de tentativas de vacinação de reborns, de pedidos de leitos neonatais e até de denúncias à polícia por supostos maus-tratos a bonecas.
Diante dos abusos, parlamentares começaram a propor medidas legislativas. O deputado Paulo Bilynskyj (PL-SP)apresentou um projeto que proíbe o atendimento de bonecas hiper-realistas em unidades de saúde públicas e privadas. Já Zacharias Calil (União-GO) propôs sanções administrativas a quem usar reborns para obter benefícios destinados a crianças reais.
Segundo a enfermeira Júlia Moraes, de uma UBS na região Norte de Goiânia, a equipe chegou a ser ameaçada após negar atendimento a uma mulher com um reborn:
— Ela gritava dizendo que o bebê estava com febre. A boneca tinha um chip que emitia sons. Foi constrangedor. Precisamos acionar a segurança da unidade. A paciente dizia que iríamos “responder por negligência infantil”.
Um sintoma social mais profundo?
A popularidade dos bebês reborn não é apenas um modismo estético. Especialistas acreditam que o fenômeno revela um sintoma coletivo de solidão, ansiedade e desconexão emocional, especialmente entre mulheres adultas, muitas vezes sobrecarregadas, invisibilizadas ou marcadas por experiências traumáticas.
Para a socióloga Helena Bittencourt, a rebornmania também precisa ser lida à luz das transformações sociais:
— Em tempos de hiperindividualismo e fragilidade dos laços sociais, o reborn simboliza a busca por vínculo, por cuidado. Mas é também reflexo de um sistema que desampara mulheres — não oferece suporte psicológico, não valoriza a maternidade, não acolhe o luto.
Ela aponta ainda o perigo de “infantilização da vida adulta” como válvula de escape emocional:
— A boneca representa o ideal de controle: um bebê que não chora, não adoece, não desafia. Mas isso também pode cristalizar traumas e impedir processos reais de elaboração emocional.
Entre o amor e o alerta
A discussão sobre os bebês reborn exige equilíbrio. Enquanto alguns enxergam na prática um hobby ou ferramenta de apoio terapêutico, outros veem sinais de alerta para quadros de dissociação e uso indevido de políticas públicas.
O que está claro é que o fenômeno não é mais marginal. Ele está nas vitrines, nas redes, nas ruas — e nos prontuários médicos.
Até onde vai o afeto? Onde começa a negação da realidade? A resposta talvez esteja no colo dessas mães de silicone — que, muitas vezes, só desejam segurar algo que o mundo real lhes negou.
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