Enquanto Odete Fátima Machado da Silveira fincava marcos geológicos na Amazônia, Odete Roitman impunha sua moral implacável na televisão. Uma nasceu da ciência. A outra, da dramaturgia. Ambas enfrentaram — e personificaram — o poder.
Por Fernanda Cappellesso
Duas Odetes. Duas narrativas. Uma real, outra fictícia. Ambas, no entanto, ligadas por um traço em comum: desafiaram o tempo, o espaço e o papel reservado às mulheres nos seus respectivos mundos.
A Odete da Terra: pioneira, desbravadora, geóloga
Pouco conhecida do grande público, Odete Fátima Machado da Silveira foi uma das primeiras geólogas a atuar na Amazônia Legal nas décadas de 1970 e 1980. Nascida no interior de Minas Gerais, ela se formou em Geologia quando o curso ainda era predominantemente masculino. Enviada para o Norte pelo extinto Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM), ajudou a mapear solos, identificar reservas e abrir espaço para uma geração de cientistas mulheres no coração do Brasil.
Odete Fátima percorreu estradas inexistentes, conviveu com comunidades ribeirinhas, enfrentou surtos de malária e ainda teve que disputar respeito em ambientes corporativos e militares que a viam como exceção. Sua trajetória é hoje reconhecida em publicações acadêmicas, prêmios da CPRM (Serviço Geológico do Brasil) e homenagens no setor mineral. Mas continua invisível para boa parte da população — diferentemente de sua xará midiática.
A Odete do horário nobre: vilania como espelho social
Criada por Gilberto Braga, Odete Roitman surgiu em 1988 como a grande antagonista de Vale Tudo, novela que discutia a corrupção e a inversão de valores na sociedade brasileira. Rica, elitista, implacável, Odete virou símbolo de uma moral conservadora travestida de superioridade intelectual e econômica. Sua frase mais famosa — “Pobre é uma raça” — escandalizou o país e a tornou, paradoxalmente, inesquecível.
Vivida por Beatriz Segall, Roitman era uma vilã fora do molde caricato. Não gritava, não cometia crimes de sangue. Manipulava com lógica, desprezava com elegância, e morreu de forma brutal, deixando um mistério que parou o Brasil em frente à televisão: Quem matou Odete Roitman?
O Brasil entre a ciência e a ficção
A distância entre essas duas Odetes é geográfica, simbólica e política. Uma atuava nos bastidores do desenvolvimento nacional, literalmente abrindo caminho para o conhecimento do subsolo brasileiro. A outra dominava o imaginário coletivo, representando a elite brasileira — e seus vícios.
Mas ambas, à sua maneira, foram revolucionárias. Odete Fátima rompeu barreiras técnicas e sociais numa região ignorada por décadas. Odete Roitman denunciou com sua existência os podres poderes da elite urbana, num Brasil recém-saído da ditadura. Uma foi apagada da memória popular. A outra, eternizada no folclore da teledramaturgia.
Entre o real e o simbólico, permanece a pergunta:
Quantas Odetes Fátimas o Brasil ainda precisa descobrir — e quantas Odetes Roitman ainda estão por aí, decidindo o destino dos outros em silêncio?
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