No Brasil, as mulheres negras representam cerca de 28% da população, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), configurando-se como um dos maiores grupos demográficos do país. Apesar disso, enfrentam os maiores desafios impostos pelas desigualdades estruturais. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) revelam que elas estão desproporcionalmente presentes nos setores mais precarizados do mercado de trabalho, com 39,8% ocupando empregos informais e cerca de 60% recebendo salários inferiores ao salário mínimo. Além disso, são as principais vítimas de violência letal, com índices alarmantes de feminicídio que triplicam em relação a mulheres brancas.
No Tocantins, estado com uma significativa população negra e afrodescendente, surgem exemplos de resistência e liderança que rompem com esses padrões de exclusão. Maria José Cotrim, uma das vozes mais ativas na defesa dos direitos das mulheres negras, utiliza a comunicação como um instrumento de transformação. Sua atuação vai além da conscientização, alcançando a capacitação de lideranças populares e promovendo discussões sobre racismo e empoderamento feminino em todo o estado. “A comunicação é uma ferramenta potente para amplificar as vozes de mulheres que historicamente foram silenciadas”, afirma Maria José.
Nellys Correa, uma liderança negra de grande relevância no Brasil, transforma o empreendedorismo em um ato de resistência. Desde os 19 anos, ela se dedica a ajudar mulheres negras a reconhecerem seu valor como empresárias e líderes. Por meio da iniciativa As Digitais, Nellys oferece cursos, mentorias e suporte emocional para afroempreendedoras que, muitas vezes, se veem como “biqueiras”, subestimando suas capacidades. “O empreendedorismo feminino negro é um legado que remonta às nossas ancestrais, que faziam do comércio uma ferramenta de sobrevivência e autonomia”, explica.
A historiadora Ana Paula Araújo contextualiza essa luta como parte de uma trajetória histórica de resistência. “Desde o período colonial, as mulheres negras desempenham papéis essenciais na construção da sociedade brasileira. Elas eram as responsáveis por manter a economia informal das comunidades quilombolas, sustentando famílias e redes de apoio”, pontua. Ana Paula também destaca que o empreendedorismo das mulheres negras, hoje visível em iniciativas como as de Maria José e Nellys, carrega as marcas de séculos de exclusão e reinvenção.
Comunicação como voz das mulheres negras
Maria José Cotrim, empresária, palestrante e consultora, entende a comunicação como uma ferramenta essencial para dar visibilidade às mulheres negras. “As mulheres são maioria e estão na base da desigualdade, principalmente as mulheres negras. Meu trabalho é estar perto, pautar essas mulheres, conectar-me com elas e fazer da comunicação um instrumento potente de voz para todas”, afirma.
Para Maria José, o Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, é uma data crucial para reflexões profundas sobre racismo e desigualdade. “É uma data que mexe num lugar do brasileiro, do tocantinense, que ninguém gosta de mexer. Ninguém gosta de falar sobre racismo porque os racistas não se consideram racistas. A sociedade quer varrer o assunto para debaixo do tapete”, pontua.
Além da conscientização, Maria José utiliza sua expertise em comunicação para realizar palestras gratuitas, formar lideranças populares e inspirar outras mulheres a ocuparem espaços de protagonismo. “Ser empresária é um desafio, ser empresária negra é um desafio ainda maior. Muitas coisas têm cor neste país, e quase nenhuma delas é negra. Precisamos transformar essa realidade e fazer da questão racial uma pauta permanente”, enfatiza.
Empreender como ato de resistência
Nellys Correa, empreendedora desde os 19 anos, também atua no fortalecimento das mulheres negras, unindo empreendedorismo e autoconhecimento. Para ela, o empreendedorismo é uma herança histórica das mulheres negras, marcada pela luta pela sobrevivência. “O dom de fazer negócios é feminino e preto. Está nas nossas veias desde as mulheres escravizadas, que buscavam garantir liberdade para suas famílias”, explica.
Entretanto, Nellys observa que o valor desse trabalho é frequentemente desconsiderado, tanto pela sociedade quanto pelas próprias mulheres. Foi a partir dessa percepção que ela criou a iniciativa As Digitais, voltada para a capacitação de afroempreendedoras. “Essas mulheres, muitas vezes, não se enxergavam como empresárias, mas como aquelas que têm um ‘bico’. Nosso trabalho é mostrar que elas têm potencial para liderar negócios e transformar suas vidas”, conta.
As Digitais oferece cursos, mentorias e eventos que integram saúde mental, ancestralidade e habilidades práticas. “Meu objetivo é que essas mulheres entendam o tamanho que têm e se tornem líderes, empresárias e agentes de transformação. Isso me motiva todos os dias”, afirma.
Um legado de luta e resistência
A historiadora Ana Paula Araújo contextualiza que a trajetória das mulheres negras no Brasil é marcada por séculos de resistência e reinvenção. “Desde o período colonial, as mulheres negras desempenham papéis fundamentais na economia informal e na construção de comunidades, enfrentando múltiplas camadas de opressão racial e de gênero”, explica.
Ana Paula destaca que as iniciativas de liderança e empreendedorismo atuais têm raízes históricas. “O trabalho dessas mulheres é um reflexo da força coletiva de gerações que transformaram a luta por sobrevivência em estratégias de emancipação e protagonismo”, afirma. Ela também ressalta a importância de datas como o Dia da Consciência Negra para a valorização dessas narrativas. “Essa data não é apenas um marco de memória, mas um convite à reflexão contínua sobre a persistência das desigualdades e a urgência de mudanças estruturais.”
Para além do dia 20 de novembro
Tanto Maria José quanto Nellys concordam que a luta pela igualdade não pode se restringir ao Dia da Consciência Negra. “Precisamos que a questão racial saia da agenda pontual e se torne uma pauta cotidiana para toda a sociedade”, defende Maria José.
Nellys reforça a necessidade de união e fortalecimento entre as mulheres. “Nós precisamos dar as mãos, nos fortalecer e acreditar no nosso potencial. A evolução do Tocantins e do Brasil passa pela contribuição das mulheres negras”, afirma.
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