Antes de sua entrada em vigor, o acautelamento do processo só se dava por meio da prisão do sujeito. Era prender ou soltar.

Demóstenes Torres

Entre 2008 e 2009, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, tive a oportunidade de relatar o Projeto de Lei 111/2008, que veio a se tornar a Lei 12.403/2011.  Ela alterou o Código de Processo Penal, fazendo prever em nosso ordenamento jurídico as chamadas “medidas cautelares diversas da prisão”.

Antes de sua entrada em vigor, o acautelamento do processo só se dava por meio da prisão do sujeito. Era prender ou soltar, pois o instituto da fiança havia se tornado obsoleto e só foi revigorada com essa mesma lei. A situação mostrava-se desarrazoada em vários casos concretos. Muitos eram presos em hipóteses nas quais, talvez, o mero recolhimento domiciliar, o afastamento do cargo etc., poderia obstar o risco que o réu representava à persecução penal.

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Com o novo dispositivo legal, tentava se realçar o estado de inocência (artigo 5º, LVII da CF), possibilitando a aplicação de medida acautelatória menos invasiva à liberdade do indivíduo, a partir de um juízo de proporcionalidade (adequação, necessidade e razoabilidade), evitando excessos e permitindo que a suspensão desse direito fundamental pudesse ocorrer na exata medida de sua necessidade.

Ocorre que, assim como a prisão preventiva, tais variações se submetem “aos princípios gerais das medidas cautelares” (Aury Lopes Jr.), podendo ser impostas nas hipóteses em que se mostrem suficientes a afastar o risco processual, evitando a aplicação da medida extrema.

Todavia, embora as medidas diversas também tenham natureza cautelar, vê-se a sua crescente aplicação descriteriosa, como meros mecanismos de substituição da prisão preventiva. Nesse contexto, os tribunais, ao afastarem a necessidade da custódia, aplicam, sem qualquer fundamentação concreta, as medidas diversas. E, muitas vezes, fundando-se na proteção da “credibilidade da justiça”, na “sensação de impunidade”, no “descrédito do Poder Judiciário”, ou em elementos ínsitos ao tipo penal, como a gravidade concreta da conduta, o número de réus, os valores que envolvem determinada prática delitiva, os meios de execução, entre outros (lavajatismo).

Diagnosticado este estado de coisas, é fundamental lembrar que ao aplicador recai o ônus de demonstrar a necessidade da medida para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal, ou para evitar a prática de infrações; e, ao decretá-la, deve apreciar os indícios de culpabilidade do agente, as circunstâncias do fato e suas condições pessoais, conforme estabelece o inciso II do artigo 282 do Código de Processo Penal, fixando a cautelar que afaste o risco ao processo e melhor preserve a liberdade do indivíduo.

Pouco ou nada se tem dito a respeito, mas a defesa exerce (ou deveria exercer) papel fundamental na proteção do direito constitucional à presunção de inocência. Não apenas no aspecto formal, quando maneja os instrumentos processuais postos à sua disposição, como o pedido de liberdade provisória, a revogação da prisão preventiva, o habeas corpus etc., mas também no aspecto substancial, ao executar efetivo contraditório das razões colocadas na decisão. No caso das cautelares pessoais, cabe ao defensor praticar o efetivo controle da situação fática, bem como auxiliar na produção de contraprovas dos motivos que autorizaram a restrição, seja ela a prisão preventiva ou as cautelares diversas. Exemplificando: caso se decrete a prisão de determinado indivíduo em razão da ocorrência de supostas ameaças a uma testemunha, a defesa poderá praticar vários atos, tais como diligenciar junto ao juízo, buscando a colheita rápida do testemunho; produzir provas contrárias, afastando a necessidade cautelar. Enfim, no exemplo posto é possível discutir as razões, pois a cautelar ampara-se em circunstância transitória.

Situação diversa se dá quando a medida extrema é imposta fundando-se em razões abstratas, tais como assegurar a credibilidade da justiça, atender aos reclamos sociais, afastar a sensação de impunidade; ou em meras ilações sem qualquer concretude, como a pretensão genérica de evitar a reiteração delitiva. Veja-se que nestes casos não se faz presente a provisionalidade, o que impede o exercício pleno do direito de defesa. O que fazer se o juízo, ao afastar a necessidade da prisão, aplica ao investigado o recolhimento domiciliar, fundando-se na preservação da credibilidade da justiça e no afastamento da sensação de impunidade? Se o contexto deve ser provisional e a manutenção da medida se vincula ao fato que justificou a sua imposição, só se poderia revogar a restrição após a justiça recuperar a sua credibilidade e a sociedade sentir que a impunidade não mais persiste (?!). Mas se a prisão foi determinada para assegurar o crédito da justiça e afastar o sentimento da ausência de punição, o cumprimento da medida não já esgotaria a sua necessidade? A credibilidade já não estaria restabelecida com a prisão? Então, prende-se e se solta logo em seguida? Eis o paradoxo. Não há como se exercer a ampla defesa e o contraditório, se o motivo fático da imposição de quaisquer das medidas cautelares não é meramente situacional, posto que ao sujeito reste apenas a possibilidade de articular a ausência de fundamentação idônea para a constrição.

Isso, mais recentemente, tem sido demonstrado pelo Ministro Rogério Schietti, do Superior Tribunal de Justiça, que, baseando-se em argumentos de seus colegas Sebastião Reis e Nefi Cordeiro, afirma: “Verifico que não se mostram suficientes as razões invocadas pelo Juízo singular para justificar a imprescindibilidade das medidas cautelares diversas, porquanto deixou de contextualizar adequadamente a necessidade de sua imposição, o que impõe a concessão da ordem” (HC 467.181, 5ª Turma, publicado em 14/05/19). Ainda: “Não se mostram suficientes as razões invocadas pelo Juízo monocrático para impor aos recorrentes o cumprimento de cautelares diversas da prisão, porquanto apenas se reportou à representação ministerial sem tecer nenhum comentário a respeito dos requisitos da necessidade e adequação de tais medidas” (RHC 72820, 5ª Turma, publicado em 16/04/18).

Outro ponto importante é que a cautelar pessoal não pode se fundar em predicados do ato delitivo, como a gravidade abstrata, ou mesmo concreta. Embora haja várias decisões atestando que a primeira não configura fundamentação idônea para a aplicação de eventuais cautelares, se tem evitado a expressão, substituindo-a pela segunda. Nada de diferente. O que importa é que tanto a gravidade abstrata quanto a gravidade concreta são elementos do fato típico que não se sucumbem ao tempo. Seja na fase de investigação, na instrução processual, ou mesmo no cumprimento da sentença condenatória, o crime que é concretamente grave não deixará de sê-lo. Não se deve admitir, pois, a utilização abstrata da gravidade concreta da conduta.

A ausência de concretude fática, alheia à figura típica e que apresente caráter provisional, preponderante característica dos fatos cautelares, representa clara atuação judiciária fora dos limites normativos que permitem a restrição antecipada do direito de liberdade. É preciso compreender o óbvio: o processo, seja inquérito ou possível ação penal, correrá normalmente caso não justificada a constrição acautelatória.

O Superior Tribunal de Justiça começou a pôr ordem na casa. Qualquer medida cautelar seja prisão, tornozeleira eletrônica, apreensão de passaporte, recolhimento domiciliar, afastamento do cargo, proibição de ausentar-se da comarca, não pode ser imposta se ausente a necessidade momentânea de ser infligida ao investigado ou réu. Também é defeso ao julgador, ao constatar a desnecessidade da segregação, automaticamente substituí-la por outras medidas, que configuram as chamadas situações diversas. Trocando em miúdos, não se pode, de forma mecânica, afastar uma prisão e, por exemplo, recolher passaporte, sem fundamentar sua premência.

É muito bom ver o professor Schietti voltar aos livros e esquecer-se da vingança penal. Com seu conhecimento esplêndido, pode iluminar a cidade novamente.

(Artigo de Demostenes Torres Demóstenes Torres, 58 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado, enviado ao Diário Tocantinense).

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