Relatos de moradores, ruínas de uma fazenda e investigações silenciosas revelam que o maior narcotraficante da história pode ter operado em território brasileiro. O que ainda resta da presença de Pablo Escobar no Cerrado?
Por Fernanda Cappellesso I Diário Tocantinense- Palmas (TO) — Uma paisagem de beleza intocada, moldada por dunas douradas, chapadas imponentes e rios de águas cristalinas, esconde uma face menos conhecida do Tocantins. Em meio às formações rochosas das Serras Gerais, zona de transição para o Jalapão, surgem os restos silenciosos de uma história que transcende o folclore local: a possível presença de Pablo Emilio Escobar Gaviria, o narcotraficante mais famoso do século XX, no coração do Cerrado brasileiro.
A suspeita, que por décadas circulou entre moradores e agentes da segurança pública, voltou aos holofotes após reportagem do programa Fantástico, da TV Globo, em março de 2024. A matéria expôs vestígios materiais, testemunhos e dados de inteligência que apontam a instalação de um laboratório de cocaína na região — em uma fazenda hoje em ruínas, atribuída a intermediários do Cartel de Medellín nos anos 1980.
A fazenda esquecida no Jalapão e o início da suspeita
A propriedade, identificada como Fazenda Santa Marta, está localizada entre os municípios de Taguatinga e Aurora do Tocantins, na porção sudeste do estado, uma área de difícil acesso, cercada por mata nativa e paredões rochosos. O terreno, hoje tomado pelo mato, teria servido como base para refino de pasta base de cocaína entre 1983 e 1987.
Na época, a região ainda integrava o norte de Goiás. O estado do Tocantins só foi criado oficialmente em 1988. A ausência do poder público, a vastidão territorial e a precariedade das estradas tornavam o Jalapão uma zona estratégica para atividades clandestinas.
“Eu lembro que passavam helicópteros à noite, e caminhões com gente armada falavam uma língua estranha. A gente achava que era militar. Depois é que se falou desse tal Escobar”, relata o lavrador aposentado João Batista Mendes, de 56 anos, morador da zona rural de Aurora.
As ruínas da fazenda chamam a atenção: estruturas de alvenaria com paredes espessas, compartimentos subterrâneos e vestígios de uma pista de pouso improvisada com cascalho compactado. O local nunca foi oficialmente investigado pelas autoridades, mas passou a ser visitado por curiosos e estudiosos da região após a reportagem de 2024.
Documentos inéditos e as rotas do tráfico aéreo
Levantamento obtido pela reportagem via Lei de Acesso à Informação mostra que a Polícia Federal registrou, entre 1983 e 1986, ao menos 14 incursões aéreas não autorizadas nos céus da então região norte de Goiás. As rotas vinham da Bolívia e da Amazônia e faziam conexão direta com municípios como Dianópolis, Almas, Novo Alegre e Aurora do Tocantins.
O ex-agente da PF Carlos Alberto Lins, que atuou na região no período, afirma que os relatórios da época indicavam movimentações típicas do narcotráfico.
“Havia uma triangulação aérea: Bolívia – Goiás – Pará. O Jalapão era o ponto de parada. Em algumas fazendas, encontrávamos tambores de gasolina de aviação. Mas não tínhamos tecnologia para monitorar com precisão.”
Segundo Lins, os aviões de pequeno porte pousavam em pistas de terra batida adaptadas em propriedades privadas. A maior parte da droga seguia para o Pará, de onde era escoada por via fluvial.
O plano de expansão do Cartel de Medellín para o Cone Sul
Pesquisadores da DEA (Drug Enforcement Administration) dos EUA revelaram que, em 1985, o Cartel de Medellín discutia a diversificação de rotas e o deslocamento de parte de sua infraestrutura para países do Cone Sul. Brasil, Paraguai e Argentina estavam no radar estratégico do cartel.
O historiador colombiano Santiago Morales, autor de “Las fronteras de Escobar”, aponta o Jalapão como “exemplo de território negligenciado que favorecia a instalação de estruturas logísticas”.
“Escobar precisava de áreas com pouca vigilância e capacidade de esconder insumos e produção. A combinação entre Cerrado e ausência estatal tornava essa faixa do Brasil especialmente valiosa.”
O silêncio do Estado e a criação do Tocantins
À época, a região vivia uma profunda desconexão institucional. A criação do Tocantins, que só ocorreria após a promulgação da Constituição de 1988, era ainda uma demanda reprimida. As comunidades do norte goiano enfrentavam o abandono das rodovias, a ausência de policiamento e a carência de infraestrutura básica.
O cientista político Rafael Nunes, da Universidade Federal do Tocantins, argumenta que o vácuo de poder facilitou a infiltração de atividades ilícitas.
“Era um território politicamente invisível. A criação do estado foi, em parte, uma tentativa de reconfigurar a presença do Estado brasileiro em uma área que já havia sido ocupada, ainda que informalmente, por interesses estrangeiros e redes ilegais.”
A conexão local: políticos, fazendeiros e pilotos

A peça mais delicada da investigação envolve as possíveis conexões entre o cartel e elites locais. Um ex-piloto, entrevistado sob anonimato pelo Fantástico, afirma ter feito dezenas de voos entre Goiás, Bolívia e Pará, transportando carga “pesada e de alto valor”.
Além disso, documentos da CPI do Narcotráfico, realizada no Congresso Nacional em 1999, citam dois ex-deputados estaduais de Goiás como proprietários de terras vizinhas à Fazenda Santa Marta. Nenhum deles foi formalmente investigado.
O historiador José Luiz Santana, especialista em redes ilícitas e fronteiras internas, afirma que a conivência de elites locais é um traço recorrente na história do narcotráfico.
“Escobar não operava sozinho. Ele dependia de alianças. Essas parcerias muitas vezes envolviam gente graúda, com sobrenome, mandato ou influência nos rincões do poder.”
O que dizem os pesquisadores e o que falta investigar
Para o pesquisador Lucas Ribeiro, da Universidade Federal de Goiás, a ausência de uma investigação formal sobre a presença de Escobar no Tocantins representa uma “oportunidade histórica desperdiçada”.
“Temos ruínas físicas, relatos consistentes e dados de inteligência internacional. Falta o Estado brasileiro reconhecer a gravidade e abrir os arquivos que ainda estão sob sigilo.”
Segundo ele, há um esforço recente de universidades públicas da região Norte e do Centro-Oeste para consolidar um acervo histórico sobre a presença do narcotráfico na formação de estados como Acre, Rondônia e Tocantins.
Turismo, patrimônio e o futuro da memória
A fazenda, embora abandonada, vem despertando o interesse de historiadores e operadores de turismo de aventura. Grupos já oferecem roteiros por trilhas que passam pelas ruínas da Fazenda Santa Marta. A dificuldade de acesso, porém, mantém o local isolado e sem sinalização.
Movimentos locais defendem a criação de um memorial contra o narcotráfico, nos moldes dos espaços criados na Colômbia após a queda de Escobar.
“Precisamos transformar essa página sombria em aprendizado. O Jalapão não pode ser apenas paisagem: é história também”, diz a professora e ambientalista Helena Duarte, de Mateiros.
Conclusão: o rastro invisível do narcotráfico
O caso da Fazenda Santa Marta revela mais que uma passagem de Escobar pelo Brasil. Ele desnuda a vulnerabilidade de regiões inteiras a redes ilícitas em períodos de transição política e ausência estatal. O Jalapão, hoje símbolo de ecoturismo e preservação, guarda em sua memória uma página ainda mal contada — e que precisa ser registrada antes que desapareça sob o silêncio institucional.
Link para compartilhar: