Igrejas se adaptam à lógica das redes sociais para evangelizar, arrecadar recursos e aumentar o engajamento de fiéis; especialistas alertam para riscos da fé baseada em performance digital
Nos bastidores de uma igreja evangélica de grande porte em Aparecida de Goiânia, o culto de domingo à noite começa antes da oração inicial. Às 16h30, uma equipe de audiovisual entra em ação com câmeras, roteiros de corte, planejamento de thumbnails e estratégias para reels. Quando o pastor sobe ao púlpito, não fala apenas para os fiéis sentados nos bancos. Ele prega para o TikTok, para o Instagram e para o YouTube — e para o algoritmo que decide quantas pessoas verão aquela mensagem.
A cena, que se repete em templos e comunidades religiosas por todo o país, reflete uma transformação mais ampla: a fé organizada passou a operar também como influência digital. “Não estamos mais falando apenas de evangelização. Estamos falando de performance, de storytelling e de engajamento. É a fé em formato de conteúdo”, avalia o sociólogo da religião Davi Rios.
Cultos mais curtos, câmeras em 4K e legendas com emojis
A dinâmica da evangelização online levou igrejas a adaptarem formatos e linguagens. Em Goiânia, os cultos presenciais agora são editados ao vivo para que trechos possam ser convertidos em vídeos curtos, de no máximo 90 segundos, voltados às plataformas. “Sabemos que o TikTok recompensa o conteúdo emocional, direto e com boa edição visual. Então, formatamos nossos momentos de oração e testemunho para esse tipo de corte”, afirma Elisa Tomé, coordenadora de comunicação digital da igreja.
Segundo ela, vídeos com temas como cura, transformação e libertação espiritual têm desempenho superior em relação a pregações teológicas mais complexas. “Se um vídeo com a frase ‘Deus restaurou meu casamento’ alcança 300 mil visualizações, adaptamos o conteúdo do próximo culto para explorar esse tema de forma mais direta”, explica.
A decisão de pauta, portanto, passa a depender não apenas de orientação pastoral, mas das métricas de alcance, retenção e engajamento oferecidas pelas próprias plataformas.
Algoritmo se torna o novo liturgo invisível
Para a pesquisadora Paula Menezes, doutoranda em comunicação religiosa, o algoritmo opera hoje como um “liturgista invisível”, que condiciona o que será mostrado e para quem. “As redes priorizam conteúdos que prendem a atenção. Com isso, a lógica da fé também é moldada pelo tempo de tela. A espiritualidade se adapta à linguagem da viralização”, afirma.
Essa mudança é visível tanto na forma como os cultos são organizados quanto na figura do líder religioso. Pastores e padres com maior desenvoltura nas redes sociais ganham status de influenciadores espirituais. Muitos mantêm rotinas de publicações com vídeos devocionais diários, transmissões ao vivo e séries semanais com temas como ansiedade, prosperidade, batalha espiritual e vida amorosa.
“Vemos uma substituição parcial da autoridade institucional pela autoridade performática”, analisa o teólogo Maurício Lobo. “Não é a formação teológica que gera engajamento, e sim a capacidade de comunicação em ambientes digitais.”
Arrecadação e marketing de conversão
Outro aspecto que acompanha a digitalização é a arrecadação de recursos. Com o avanço das transmissões ao vivo, o momento da oferta também ganhou novo formato: QR Codes na tela, links integrados a sistemas de doação recorrente e mensagens emotivas com CTA (call to action) explícito.
“Hoje, utilizamos estratégias similares às do e-commerce. Criamos campanhas semanais, programamos e-mails automáticos e produzimos vídeos exclusivos para os doadores recorrentes”, afirma Leandro Braga, analista de captação digital e consultor de igrejas de pequeno e médio porte no Centro-Oeste.
De acordo com estimativas da Rede de Pesquisas em Religião e Tecnologia (RePret), igrejas com presença consolidada no ambiente digital arrecadam, em média, 35% de suas receitas mensais por canais online — percentual que tende a crescer nas regiões metropolitanas.
Fé sob risco de esvaziamento teológico
O movimento, no entanto, não ocorre sem tensões. A busca por visibilidade pode colocar em segundo plano a profundidade teológica e litúrgica. “A fé baseada em tendências pode se tornar fragmentada, voltada apenas ao que viraliza. Isso compromete o amadurecimento espiritual da comunidade”, alerta Rita Calegari, psicóloga e pesquisadora de comportamento religioso.
Para ela, o desafio contemporâneo das igrejas é equilibrar presença digital com conteúdo substancial. “O problema não é o meio, mas a lógica do meio. O algoritmo privilegia o impacto, a emoção rápida, o efeito. Mas a espiritualidade exige tempo, silêncio, contramão. Nem sempre o que transforma é o que engaja”, diz.
Uma nova ágora espiritual
A dinâmica de redes como Instagram e TikTok vem redefinindo também a noção de comunidade religiosa. “A igreja se torna uma experiência multiplataforma. O fiel pode nunca ter entrado fisicamente no templo, mas sente-se parte da comunidade por meio dos conteúdos”, afirma Davi Rios. Essa nova ágora digital é onde fé, entretenimento, identidade e consumo espiritual se misturam.
Em um país com mais de 150 milhões de usuários ativos nas redes sociais, a evangelização via plataformas digitais está longe de ser um fenômeno periférico. Ela redefine a forma de crer, de pertencer e de doar. E enquanto fiéis seguem evangelizando por stories, o algoritmo segue decidindo quem será alcançado pela próxima pregação.
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