Pratos como galinhada, arroz com pequi, bolo de milho frito e peixe na folha de bananeira revelam os sabores de uma cultura que atravessa gerações e ganha força como patrimônio regional
Em um fogão a lenha aceso desde o início da manhã, dona Conceição prepara a galinhada que aprendeu com a mãe aos 12 anos. O cheiro de alho refogado, pequi estalando na panela e arroz soltinho invadem a casa simples no Jardim Aureny. Aos 64 anos, ela não se considera cozinheira profissional, mas sua receita já serviu políticos, artistas e turistas em busca da “comida de verdade”.
Esse é apenas um dos muitos retratos da culinária popular do Tocantins, uma das mais diversas e afetivas do Brasil. Com raízes nas tradições goianas, mineiras, baianas e indígenas, a cozinha tocantinense reflete a geografia do cerrado e dos rios — e encontra em cidades como Palmas, Porto Nacional e Araguatins seus maiores guardiões.
Panelada ao amanhecer, peixe ao entardecer
Em Porto Nacional, a panelada — prato à base de vísceras bovinas — é servida ainda de madrugada nas barracas da feira central. “Aqui o povo gosta de sustância pra começar o dia. Tem fila às 5h da manhã”, conta Seu Raimundo Lopes, 72, quitandeiro e filho de feirante.
Já nas margens do Tocantins, em Araguatins, é o peixe na folha de bananeira que atrai os olhares. “A gente limpa o tucunaré ou o surubim, tempera com cheiro-verde, alho, sal e enrola na folha fresca. Vai direto na brasa”, explica José Gomes, pescador e dono de um quiosque à beira-rio. O preparo ancestral é feito ali mesmo, à sombra das árvores, com bancos de madeira e garrafas térmicas de suco de caju.
Quitandas, milho e tradição
De volta à capital, é nas quitandas que se encontram tesouros como o bolo de milho frito, uma iguaria que mistura massa batida na mão com fubá fresco e leite do dia. A receita varia de bairro para bairro. Em Taquaruçu, por exemplo, algumas famílias ainda fritam o bolo em gordura de porco feita em casa.
Na mesma região, durante o mês de junho, ocorre o Festival Gastronômico de Taquaruçu, que movimenta a economia local e valoriza ingredientes nativos. O evento chega à sua 17ª edição com pratos autorais que reinterpretam receitas do cerrado, como o brigadeiro de baru e o picadinho de carne de sol com purê de mandioca e farofa de castanha.
Rota dos sabores
Com apoio de pequenas pousadas e guias turísticos locais, alguns municípios começaram a organizar rotas gastronômicas informais. Em Araguatins, por exemplo, visitantes podem seguir um percurso que inclui café da manhã na feira, almoço com peixe fresco, lanche com pamonha na palha e jantar com panelada. Em Porto Nacional, há quem ofereça experiências imersivas com oficinas de galinhada, colheita de hortaliças e roda de viola.
— A comida é uma ponte com a memória. A gente visita uma cidade e, muitas vezes, o que leva pra sempre é o sabor que provou ali — afirma a chef e pesquisadora Luana Peixoto, especializada em cozinha regional brasileira.
Curiosidades e registros
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O arroz com pequi é feito de maneira distinta em cada cidade: com frango caipira em Porto, com carne seca em Araguatins, e vegetariano com açafrão-da-terra em Palmas.
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Em algumas casas, ainda se utiliza a panela de ferro herdada de avós para manter o sabor “original”.
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A pamonha doce de colher, pouco conhecida fora do estado, é uma variação cremosa da receita goiana e leva canela e cravo em infusão.
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Muitas quitandeiras vendem seus bolos embrulhados em folhas de bananeira ou palha de milho como forma de conservar o aroma.
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