Análise especial do Resenhando DT mostra como o filme de Fernando Meirelles dramatiza, com sensibilidade, um dos momentos mais complexos da história recente da Igreja Católica — e onde ele se distancia da realidade.
O filme “Os Dois Papas”, dirigido por Fernando Meirelles, parte de um dos episódios mais extraordinários da história contemporânea da Igreja Católica: a renúncia do Papa Bento XVI em 2013 — algo que não acontecia desde o século XV, quando Gregório XII abdicou.
Na realidade, Joseph Ratzinger (Bento XVI) anunciou sua renúncia citando “falta de forças”, em meio a um cenário de crises profundas dentro do Vaticano, que incluíam escândalos de corrupção, abusos sexuais e divisões internas.
O filme transforma essa crise institucional em um drama pessoal, focando na relação entre Bento XVI e o então cardeal Jorge Mario Bergoglio (futuro Papa Francisco). Contudo, não há registros históricos de um encontro tão íntimo e intenso entre os dois antes da renúncia, como mostrado no longa. A escolha de Meirelles foi construir um “e se?” dramatúrgico para aproximar o espectador dos dilemas humanos dos personagens.
Diferenças entre a narrativa cinematográfica e a vida real
No filme:
Bento XVI busca conselhos de Bergoglio e confessa dúvidas profundas sobre sua liderança, com diálogos longos e emocionais. Francisco, por sua vez, relutante, tenta renunciar ao cargo de cardeal.
Na realidade:
Bento XVI já conhecia o cardeal Bergoglio, mas não há registros de conversas pré-renúncia dessa natureza. Além disso, Bergoglio só teria conhecimento da decisão de renúncia dias antes do anúncio público, como qualquer outro cardeal.
Outro ponto é que, diferentemente da aura “anti-política” sugerida no filme, a eleição de Francisco teve bastidores intensos. Reportagens investigativas indicam que havia articulações internas para sua escolha, principalmente entre cardeais que buscavam uma ruptura com o modelo europeu tradicional de papado.
Profundidade dos personagens e fidelidade emocional
Apesar das licenças criativas, a representação das personalidades é fiel ao que se conhece publicamente:
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Bento XVI é mostrado como um pensador conservador, com forte ligação à tradição e ao dogma da Igreja. De fato, Ratzinger foi Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, órgão guardião da ortodoxia católica, e sempre defendeu posições teológicas rígidas.
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Francisco é apresentado como uma figura de ruptura: próximo aos pobres, defensor da simplicidade e crítico das estruturas burocráticas da Igreja. A sua eleição, em 2013, simbolizou uma abertura para a periferia do mundo católico — ele é o primeiro papa latino-americano e o primeiro jesuíta a assumir o cargo.
O filme acerta ao capturar a tensão entre essas duas visões de Igreja — uma mais hierárquica e tradicional, outra mais pastoral e reformista.
O drama íntimo da renúncia: ficção que revela verdades emocionais
Embora a dramatização de encontros e confissões seja ficcional, a angústia interna de Bento XVI é amplamente documentada. Escritos e entrevistas posteriores revelam que ele via sua decisão como um ato de humildade diante dos limites físicos e morais que não poderia mais suportar.
Assim, mesmo que “Os Dois Papas” crie diálogos que nunca ocorreram, o filme acerta em representar a essência emocional dos personagens: a exaustão de Bento e o senso de missão de Francisco.
Cinema como forma de reflexão histórica
O filme de Meirelles não é uma obra documental, mas uma ficção histórica com base em personagens reais, focada mais em verdades emocionais do que nos fatos literais. Ele propõe uma reflexão sobre liderança, fé, poder e, acima de tudo, humanidade.
Ao contrário de outras obras religiosas que mitificam seus protagonistas, “Os Dois Papas” aproxima duas figuras vistas como ícones de santidade e mostra que, no fim, o papado também é feito de carne, dúvida e coragem.
Considerações finais: O que o filme nos ensina?
“Os Dois Papas” ensina que mudanças institucionais profundas são sempre, antes de tudo, mudanças humanas. A coragem de Bento em renunciar e o ímpeto de Francisco em reformar revelam que mesmo dentro de tradições milenares, a transformação é possível — e começa nas escolhas individuais.
Assistir ao filme é uma oportunidade não apenas de conhecer duas figuras centrais da fé contemporânea, mas também de refletir sobre liderança, responsabilidade e renovação em tempos de crise.
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