Há 30 anos, um grupo de supremacistas invadiu o Centro de Tradições Nordestinas (CTN), ameaçou de morte meu pai, José de Abreu, por defender nordestinos, pichou os muros com palavras ofensivas e fez disparos com armas de fogo nas paredes da Rádio Atual, que funcionava no local. O CTN foi fundado pelo meu pai para mudar o cenário de intenso preconceito e ignorância contra os migrantes nordestinos que residiam na Capital de São Paulo. E a emissora era a única naquela época que só tocava músicas nordestinas.
Então, sei bem o que devem ter sentido Tite e Bless, filhos dos atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank, vítimas de racismo em Portugal. O que devem ter sentido esses pais: medo, muito medo desse tipo de gente que se alimenta do ódio contra negros, africanos, afrodescendentes, latinos, indígenas, judeus, asiáticos, muçulmanos, nordestinos, gays… Medo dessa gente que se alimenta do racismo religioso. Medo dessa gente que é contra políticas de inclusão social de grupos marginalizados e contra a miscigenação dos povos, aliás uma das características marcantes da população brasileira.
E que mãe se manteria calma vendo seus filhos atacados por uma mulher que exigia a retirada das crianças do restaurante em que se encontravam. Fosse eu no lugar de Giovanna também não ficaria quieta, e, tal qual uma leoa, partiria com unhas e dentes em defesa de minhas crias.
Os horrores vividos por essa família de artistas, assim como tantas outras milhares e milhões de famílias pelo mundo jamais se apagam de nossas memórias. Lembro até hoje do ataque dos skinheads no CTN. Eu tinha a idade de Tite, 10 anos, e sofri anos com pesadelos, sempre acordando assustada com o que poderia ter acontecido com meu pai, com os funcionários e com os frequentadores do local.
Meu pai dizia que ficar calado seria como cúmplice. Ele não abaixou a cabeça, procurou as autoridades policiais, fez boletim de ocorrência do atentado, lutou e conseguiu a criação na Capital paulista da primeira Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, especializada no combate ao racismo, homofobia, preconceito e intolerância, sobretudo religiosa.
Ah, planeta Terra, como temos muito ainda que evoluir como humanidade. Porque ainda temos torcedores e jogadores imitando macaco nos estádios de futebol; terreiros de umbanda e candomblé destruídos e devotos surrados; negros mortos a tiros pelo fato de serem negros; crianças em situação de vulnerabilidade social retiradas de shoppings por ?constranger consumidores?, nordestinos e analfabetos escravizados em bairros nobres de grandes metrópoles; moradores de rua molhados em madrugadas frias porque dormem sob marquises de bairro comercial (ou residencial), e assim são as barbaridades contra essas minorias.
Racismo mata. Preconceito mata. Intolerância mata. Quando não é a morte física, é a morte psicológica, que encurta a vida de negros, pobres, gays, macumbeiros, nordestinos, que morrem lenta e dolorosamente de tristeza e medo.
O passado, infelizmente, ainda se faz presente no Brasil, em Portugal, nos Estados Unidos, na Inglaterra, em todo mundo cujas sociedades se formaram pelo mesmo princípio: há pessoas mais humanas que outras, a depender da cor da pele, da posição social, do nível educacional, da opção religiosa, do sexo e que persistem nos dias atuais. Triste isso. Lamentável!
Vamos virar essa página em nosso País? Apesar da dor e da indignação, vamos juntos construir um futuro mais humano, mais solidário, mais agregador? Apesar das leis existentes, elas só têm eficácia se não nos calarmos mais. Coibir esses crimes não é obrigação apenas do Estado, mas de todos nós. Denuncie o racismo, a intolerância, o preconceito, a desumanidade. Apesar do presente que insiste na discriminação e segregação sociais, podemos juntos construir uma nova era.
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