Projeto do deputado Carlos Gaguim quer premiar empresas que capacitam e contratam vítimas de violência doméstica. Especialistas e sobreviventes defendem que emprego é reconstrução de dignidade.
A cada seis horas, uma mulher é assassinada no Brasil. Em 2024, o país registrou 1.467 feminicídios, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública — o maior número desde a criação da Lei Maria da Penha, em 2006. Além dos crimes fatais, milhões convivem com agressões físicas, emocionais e econômicas dentro de casa. Para muitas, a dependência financeira é o principal motivo para não romper com o agressor. Um novo projeto de lei tenta alterar essa equação.
Apresentado pelo deputado federal Carlos Gaguim (União-TO), o PL 2062/2021 cria o Selo de Responsabilidade Social “Pró‑Mulher”, destinado a reconhecer empresas e instituições que capacitam, contratam e mantêm em seus quadros mulheres que sofreram violência doméstica. A proposta tramita na Câmara com apoio da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos da Mulher.
“Esse projeto é um instrumento de justiça social e valorização da mulher. Empregar é acolher, é resgatar. Estamos falando de devolver autonomia e dignidade a quem teve a vida interrompida pela violência”, diz Gaguim.
Poderão receber o selo empresas que implementarem ações estruturadas de formação profissional, apoio psicológico, inclusão no mercado formal e políticas de retenção no emprego. A chancela poderá ser usada em campanhas institucionais e será concedida anualmente após comprovação dos critérios.
“Trabalhar me salvou”
Aos 41 anos, Rafaela (nome fictício) não esquece o dia em que entrou pela primeira vez em uma entrevista de emprego após denunciar o ex-marido por tentativa de homicídio. Estava com os dois filhos, sem renda e sem diploma. Uma ONG a encaminhou a uma rede de farmácias que oferecia vagas para mulheres em situação de vulnerabilidade.
“Eu não queria esmola, eu queria um chão para pisar. O trabalho me deu isso. Eu consegui sair da casa onde fui espancada e pagar aluguel com meu dinheiro. Só quem vive o medo de voltar para o agressor entende o que isso representa.”
Hoje, ela é gerente de uma unidade e faz faculdade à noite. “Não me contrataram por pena, me treinaram, me acompanharam, me respeitaram. É isso que esse selo pode reconhecer.”
A força da autonomia econômica
Estudos mostram que mais de 70% das vítimas de violência doméstica dependem financeiramente do agressor. Apenas 25% conseguem se manter após uma denúncia. A economista e pesquisadora de políticas públicas de gênero Luísa Monteiro avalia que o selo pode se tornar uma ferramenta estratégica.
“Essa iniciativa atua na raiz do problema. É preciso garantir que mulheres saiam da dependência não apenas emocional, mas econômica. Um selo como esse legitima e valoriza empresas comprometidas com a inclusão social.”
Ela destaca ainda que países como Canadá, Alemanha e Espanha já adotam políticas semelhantes, inclusive com bônus fiscais ou prioridade em contratos públicos.
Medo, silêncio e recomeço
Aos 26 anos, Lívia (nome fictício) foi agredida com um soco no rosto pelo então namorado dentro do apartamento em que moravam. Perdeu o emprego após faltar por quatro dias seguidos. “Eu tinha vergonha de contar o motivo. E quando contei, fui demitida. Disseram que minha vida pessoal era instável.”
Ela passou um ano em tratamento psicológico e agora atua como auxiliar administrativa em uma empresa parceira de um centro de acolhimento. “Se eu não tivesse tido essa oportunidade, talvez estivesse com ele até hoje.”
“As empresas precisam entender que contratar uma mulher como eu não é fazer caridade. É investir em alguém que quer reconstruir tudo e não teve escolha. É sobre dar segunda chance.”
Setor produtivo como rede de acolhimento
A advogada e especialista em direitos da mulher Tainá Albuquerque afirma que a proposta de Gaguim joga luz sobre uma responsabilidade que o setor privado, durante décadas, tratou como periférica: o papel da empresa na reparação social.
“Quando o mercado se envolve, o impacto é real. Não se trata apenas de empregar, mas de criar um ambiente que permita que essas mulheres se mantenham e cresçam. É um ciclo de proteção que começa com uma chance”, diz ela.
Para Tainá, a contratação de vítimas de violência não pode ser vista como um gesto pontual ou de compaixão individual. Precisa ser estratégia institucional, sustentada por políticas internas de escuta, flexibilidade e qualificação contínua. “A mulher chega marcada. Ela não precisa apenas de crachá, mas de uma rede que não a silencie mais.”
A especialista defende ainda que o selo “Pró‑Mulher” seja utilizado como critério em processos de licitação, editais públicos e concessões estatais. A lógica, segundo ela, é simples: premiar, com oportunidades comerciais, as empresas que cumprem função social relevante. “É assim em países como Espanha e Canadá. Aqui, ainda tratamos responsabilidade social como propaganda. O selo tem chance de mudar isso.”
Tainá lembra que, em muitos casos, o ambiente corporativo pode ser a única rede segura que a mulher terá ao sair de uma relação violenta. “Se a empresa a acolhe, oferece capacitação, protege sua jornada e respeita seu tempo, ela não só permanece, como prospera. E essa prosperidade interrompe o ciclo da violência.”
Ela propõe que o setor produtivo assuma um protagonismo ao lado do Estado e da sociedade civil, atuando não apenas como empregador, mas como agente ativo de reconstrução cidadã.
“Hoje, a ausência de políticas inclusivas nas empresas é também uma forma de violência estrutural. Dar emprego não basta — é preciso garantir permanência, promoção, cuidado e escuta. O selo é só o começo.”
Próximos passos
O projeto já passou pela Comissão de Trabalho e Direitos da Mulher e agora aguarda designação de relator na CCJ. Gaguim articula apoio em bloco para que a proposta avance ainda em 2025.
“Se o Brasil quer realmente combater a violência contra a mulher, precisa fazer mais do que punir. Precisa proteger e reconstruir. E isso se faz com renda, oportunidade e emprego”, conclui o deputado.
A expectativa é de que o selo seja regulamentado em 2026 e que a primeira rodada de certificações ocorra em parceria com órgãos públicos e organizações da sociedade civil.
DADOS ESSENCIAIS
• Em 2024, foram registrados mais de 300 mil casos de violência doméstica.
• O Brasil teve 1.467 feminicídios, o maior número da década.
• 70% das vítimas dependem financeiramente do agressor.
• 25% conseguem manter-se após denunciar.
• Mulheres vítimas faltam, em média, 18 dias por ano ao trabalho.
• 21% não denunciam por medo de represália.
• Apenas 10% acreditam em punição real ao agressor.
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