Declaração oficial em Teerã ocorre em meio a novos ataques em solo israelense e acirra disputa política, religiosa e militar no Oriente Médio. Países do Golfo Pérsico recuam de alianças com Israel e adotam tom crítico.
A República Islâmica do Irã voltou a protagonizar o centro da tensão geopolítica no Oriente Médio ao declarar, de forma categórica nesta semana, que não aceita e não aceitará qualquer tipo de negociação com o Estado de Israel. O porta-voz da chancelaria iraniana, Nasser Kanaani, classificou Israel como “regime ilegítimo de ocupação” e disse que “nenhuma iniciativa internacional poderá forçar o Irã a reconhecer ou dialogar com o inimigo sionista”.
A posição veio em meio à intensificação de ataques coordenados por milícias na região: foguetes disparados a partir do sul do Líbano atingiram áreas próximas a Haifa e postos militares israelenses no norte do país. No sul, as sirenes voltaram a soar em Sderot e Ashkelon. As Forças de Defesa de Israel (IDF) atribuem os ataques a células do Hezbollah com suporte iraniano direto, inclusive com mísseis de médio alcance.
A escalada, segundo analistas ouvidos por O Globo, representa um novo estágio no conflito Israel-Irã e marca o colapso temporário de pontes diplomáticas construídas ao longo das últimas duas décadas.
Um histórico de antagonismo profundo
Desde a Revolução Islâmica de 1979, que derrubou o xá Mohammad Reza Pahlavi e instaurou a teocracia xiita sob liderança do aiatolá Khomeini, o Irã passou a negar o direito de existência de Israel. A doutrina oficial do regime sustenta que o Estado israelense é uma imposição colonialista sobre terras islâmicas e deve ser “removido do mapa”.
Ao longo dos anos 1980 e 1990, essa retórica se manteve principalmente ideológica. Mas, a partir dos anos 2000, com o desenvolvimento acelerado do programa nuclear iraniano e o fortalecimento de seus braços armados na região, o conflito passou a incorporar dimensões estratégicas e militares. Teerã tornou-se o principal financiador e operador por trás de grupos como o Hezbollah (no Líbano), Hamas (em Gaza), Houthis (no Iêmen) e milícias xiitas no Iraque e na Síria.
“O Irã se consolidou como o coração da ‘resistência armada’ contra Israel, ao mesmo tempo em que se fortaleceu como potência regional, principalmente após a invasão do Iraque pelos EUA em 2003”, explica o professor André Bittencourt, da FGV-RI.
Israel, por sua vez, manteve uma estratégia de contenção por meio de operações clandestinas, assassinatos seletivos de cientistas nucleares iranianos, ataques aéreos contra comboios e depósitos de armas na Síria, além de campanhas cibernéticas, como o famoso vírus Stuxnet em 2010.
O enfraquecimento da “paz econômica” com o Golfo
Nos últimos anos, os Acordos de Abraão — assinados em 2020 sob mediação dos Estados Unidos — marcaram a normalização das relações entre Israel e países árabes do Golfo, como Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Sudão e Marrocos. Esses acordos inauguraram uma fase de “paz econômica”, com voos diretos entre Tel Aviv e Dubai, cooperação em segurança cibernética, turismo, tecnologia e investimentos bilionários.
Mas desde outubro de 2023, com a guerra na Faixa de Gaza, esse processo começou a ruir. As imagens de civis palestinos mortos, hospitais destruídos e ofensivas israelenses em Rafah e Khan Younis provocaram indignação popular nos países árabes — pressionando os governos locais a reverem suas posturas.
Hoje, países como Emirados, Catar, Kuwait e até a Arábia Saudita — que negociava o reconhecimento formal de Israel — adotam um discurso de neutralidade crítica, cobrando cessar-fogo imediato e apoio à solução de dois Estados. O Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) divulgou nota conjunta há duas semanas condenando o avanço de Israel em Rafah e exigindo o fim da ocupação de territórios palestinos.
“O apoio tácito do Golfo a Israel virou risco político interno. Os governos árabes precisam responder ao clamor popular e mostrar distanciamento de Tel Aviv”, afirma a professora Soraya Al-Amin, da Universidade Americana de Beirute.
O papel dos Estados Unidos e as eleições em jogo
A escalada entre Irã e Israel pressiona diretamente a política externa dos Estados Unidos. Em ano eleitoral, o presidente Joe Biden tenta equilibrar a aliança histórica com Israel com as críticas de sua própria base. Jovens democratas, grupos progressistas, muçulmanos americanos e organizações de direitos humanos têm feito protestos nas ruas e nas universidades contra o envio de armas a Israel.
Ao mesmo tempo, republicanos usam a crise para acusar Biden de “fraqueza internacional”, defendendo ações mais duras contra o Irã — o que inclui novas sanções e possíveis bloqueios navais no Estreito de Ormuz.
Essa pressão política também se projeta sobre o Brasil. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que em 2023 chegou a comparar ações israelenses em Gaza a um “genocídio”, voltou a pedir cessar-fogo imediato por meio do Itamaraty. Diplomatas brasileiros acompanham de perto o movimento de repatriação de cidadãos no Oriente Médio, principalmente missionários e estudantes.
Petróleo em alta e risco de recessão
O conflito também reacendeu o temor global de instabilidade energética. O Irã controla o acesso ao Estreito de Ormuz, rota por onde passa cerca de 1/5 do petróleo mundial. Qualquer bloqueio, ameaça ou ataque naquela região afeta imediatamente os mercados.
Desde a intensificação dos ataques, o barril do Brent subiu de US$ 83 para US$ 90 em menos de uma semana, o maior pico desde fevereiro. O Brasil já sente os efeitos no dólar, no risco-país e nas bolsas.
“É uma equação perigosa: conflito religioso, instabilidade política, eleições nos EUA, petróleo em alta e ausência de mediação real”, diz Paulo Reis, economista-chefe da SulAmérica Investimentos.
Risco regional: o que pode acontecer agora?
Com o Irã negando qualquer canal diplomático e Israel prometendo responder com “força total” a cada ataque, o risco é de abertura de múltiplas frentes de conflito. Síria, Líbano, Iêmen e até o Iraque podem se tornar epicentros de confrontos indiretos entre os dois países.
Na prática, o Oriente Médio volta a ser o campo de batalha de uma guerra híbrida, que combina drones, foguetes, guerra cibernética e narrativas. E em uma era onde tudo é comunicação — da diplomacia às redes sociais —, o silêncio entre Irã e Israel fala alto: ninguém parece disposto a recuar.
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