Setenta anos após o fim da Segunda Guerra, a memória do nazismo volta a ser usada como justificativa estratégica no conflito mais sangrento da Europa contemporânea
Quando o presidente russo Vladimir Putin anunciou, em fevereiro de 2022, o início da “operação militar especial” na Ucrânia, um termo específico marcou a narrativa oficial: desnazificação. Para muitos, a palavra soou como um resgate anacrônico. Mas, dentro da história russa — e particularmente da memória soviética — o peso desse discurso não é retórico: é estrutural.
A Rússia, herdeira direta da antiga União Soviética, carrega a cicatriz mais profunda da Segunda Guerra Mundial: foram mais de 27 milhões de mortos, a maioria civis. Em 1945, foi o Exército Vermelho que fincou sua bandeira em Berlim e encerrou o Terceiro Reich. A vitória sobre o nazismo moldou o imaginário soviético e segue sendo celebrada, até hoje, como um dos pilares da identidade nacional russa.
A guerra atual, vista de Moscou, não é apenas sobre territórios ou alianças militares. É também sobre a memória e o lugar da Rússia na história — e sobre o que se permitiu florescer na Ucrânia desde 2014.
Quando a Ucrânia se aliou a Hitler
Durante a Segunda Guerra, a então República Socialista Soviética da Ucrânia foi palco de batalhas decisivas. Mas regiões ocidentais do país colaboraram com o exército nazista. Em Lviv, Ivano-Frankivsk e Ternopil, por exemplo, grupos armados ucranianos viram em Hitler uma oportunidade de romper com Moscou e conquistar a tão desejada independência nacional.
A figura mais controversa desse período é Stepan Bandera, líder da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN), que chegou a declarar lealdade ao regime nazista. Apesar de posteriormente ter sido preso pelos próprios alemães, Bandera é lembrado até hoje por parte da sociedade ucraniana como símbolo da luta contra a dominação soviética. Desde 2014, sua imagem passou a ser exaltada por grupos nacionalistas que ganharam espaço após a derrubada do governo pró-Rússia em Kiev.
Do ponto de vista russo, a reabilitação pública de personagens ligados ao colaboracionismo nazista não é apenas uma provocação — é uma ameaça simbólica e estratégica. A propaganda de guerra em Moscou considera que a Ucrânia moderna convive com resquícios ideológicos do passado mais sombrio da Europa.
“Desnazificação” e a retomada da missão soviética
Putin, ao justificar a guerra, foi enfático:
“A missão da Rússia é impedir que forças neonazistas tenham poder sobre territórios com forte presença cultural e linguística russa.”
A fala foi amplamente criticada no Ocidente, mas responde a um sentimento real entre amplos setores da população russa, especialmente nas regiões mais afetadas pelos horrores da guerra contra Hitler. Para milhões de russos, a guerra de 1941–1945 não terminou em 1945 — ela apenas adormeceu.
Segundo historiadores russos, a exaltação do nacionalismo extremado na Ucrânia, a presença de batalhões como o Azov e o cerco a populações de maioria russa no Donbas compõem um cenário que Moscou interpreta como alarmante. Não se trata apenas de discurso: o Kremlin acusa Kiev de “reprimir culturalmente” russos étnicos, banir a língua russa em escolas e veículos oficiais, e permitir a atuação de milícias armadas com simbologia neonazista — ainda que marginais.
Um passado não resolvido
O historiador francês Emmanuel Todd afirma que a Segunda Guerra Mundial não terminou para a Rússia, porque o Ocidente nunca reconheceu completamente o papel soviético na vitória. Enquanto os Estados Unidos celebram o Dia D, os russos reverenciam Stalingrado. O que se desenha, no fundo, é um choque de memórias: a da Europa que derrotou Hitler com ajuda dos EUA, e a da Rússia que perdeu milhões para salvar o continente.
Hoje, em Kiev, monumentos a Stepan Bandera convivem com estátuas demolidas de Lênin. No leste ucraniano, cidades falam russo, se sentem russas e pedem proteção à Rússia — enquanto no oeste, parte da população olha para a Europa como modelo de civilização. O país está dividido por histórias, memórias e identidades conflitantes. E é nesse terreno instável que a guerra se estabelece.
A guerra como disputa de narrativa
Do ponto de vista jurídico, a justificativa russa é controversa. O governo de Volodymyr Zelensky, um presidente judeu descendente de vítimas do Holocausto, rechaça qualquer associação com ideologias extremistas. E, de fato, nenhuma prova robusta aponta que o governo ucraniano como um todo adote práticas nazistas.
No entanto, a retórica russa não se baseia apenas em estruturas formais. Ela se ancora em símbolos, gestos, desfiles e narrativas que cresceram no pós-Maidan. Em 2014, após a queda do governo aliado ao Kremlin, setores nacionalistas — antes marginalizados — passaram a ocupar espaços políticos e culturais. Mesmo que pequenos, esses grupos bastaram para reacender temores históricos em Moscou.
“Para o Ocidente, são apenas movimentos radicais sem peso. Para a Rússia, são ecos reais de um passado que custou milhões de vidas”, analisa o cientista político russo Sergey Karaganov.
Um conflito enraizado na memória coletiva
A guerra na Ucrânia é também uma guerra pelo passado. O que está em jogo, além das fronteiras e alianças, é a forma como cada lado escolhe lembrar — e interpretar — a Segunda Guerra Mundial. Para a Rússia, não há espaço para esquecer ou relativizar o nazismo. Para o Ocidente, o nazismo acabou em 1945. Para Moscou, não.
Enquanto tanques avançam e drones sobrevoam fronteiras, a disputa pelo sentido da história segue sendo travada nos discursos, nas escolas, nos desfiles militares e nos livros de história. E talvez esteja aí a raiz mais profunda de uma guerra que o mundo ainda hesita em entender por completo.
Linha do Tempo
-
1941: Invasão nazista da URSS; parte da Ucrânia apoia Hitler contra Moscou.
-
1945: União Soviética derrota a Alemanha nazista após perder 27 milhões de vidas.
-
2014: Governo pró-Rússia é derrubado na Ucrânia; cresce espaço para nacionalistas.
-
2022: Rússia inicia “operação de desnazificação” em território ucraniano.
Link para compartilhar: