Nas últimas semanas, uma onda de especulações genealógicas tomou conta das redes sociais: internautas afirmam que o recém-eleito Papa Leão XIV teria ligações de sangue — ainda que distantes — com celebridades como Justin Bieber, Madonna e até com membros da nobreza europeia do século XVIII. O conteúdo, recheado de árvores genealógicas estilizadas e mapas coloridos de linhagens nobiliárquicas, viralizou principalmente em plataformas como TikTok, Instagram e X (antigo Twitter), impulsionado por perfis que misturam cultura pop, história e religião com teor conspiratório.
Apesar do tom anedótico, a questão levantou debates sérios: o que são essas “linhagens cruzadas” entre figuras da fé e ícones da música pop? Elas têm base real ou fazem parte de uma construção narrativa típica da internet contemporânea?
De onde surgem os boatos?
Boa parte das informações que alimentam essas teorias nasce de bancos de dados genealógicos públicos, como os mantidos pelas plataformas MyHeritage, Ancestry.com ou Geni, que catalogam milhões de registros civis, eclesiásticos e nobiliárquicos, sobretudo da Europa. Os nomes de batismo, filiações e registros paroquiais, muitos digitalizados e publicados nas últimas duas décadas, permitem rastrear descendências e construir árvores genealógicas complexas — ainda que nem sempre precisas.
Segundo Alexandre Varela, genealogista da Academia Brasileira de Genealogia, o interesse do público em identificar conexões com celebridades ou figuras religiosas sempre existiu, mas explodiu com a digitalização de acervos. “O que antes era um trabalho restrito a nobres ou famílias tradicionais, agora virou entretenimento global. Mas é preciso diferenciar especulação de evidência documental.”
A associação do novo Papa a celebridades como Madonna e Bieber teria partido de um cruzamento aleatório entre linhagens franco-canadenses, descendentes de migrantes italianos e ramos católicos estabelecidos no sul da França, no século XIX. A partir disso, perfis especulativos traçaram uma narrativa: Papa Leão XIV seria, em algum grau, um primo de 11º grau de Madonna, que por sua vez teria antepassados em Pacentro, vilarejo na região dos Abruços, na Itália.
Já Justin Bieber — cujo avô paterno teria origem franco-canadense — foi incluído na teoria por meio de uma possível ligação remota com uma linhagem que passou por Montreal, antes de migrar para o sul dos Estados Unidos. “É um castelo de cartas, erguido com dados reais e muito boa vontade interpretativa”, diz Varela.
O silêncio do Vaticano
Consultada por jornalistas italianos, a assessoria de imprensa da Santa Sé se limitou a afirmar que “a genealogia do Santo Padre não é assunto de interesse público e tampouco está no centro da missão evangelizadora da Igreja”. A nota, breve e objetiva, tenta pôr fim ao burburinho que, nos bastidores da cúria, é visto com ceticismo e certo desconforto.
Apesar disso, fontes ouvidas pelo Il Messaggero indicam que parte do clero vê a viralização como um reflexo dos tempos: a espiritualidade católica está sendo cada vez mais interpretada sob a lógica das celebridades. “É o catolicismo do algoritmo”, ironizou um teólogo ouvido pela reportagem, pedindo anonimato.
A mistura entre fé, fama e história
Para a socióloga da religião Daniela Duarte, da Universidade de Coimbra, o fenômeno tem menos a ver com fé e mais com um desejo de aproximação simbólica entre o sagrado e o pop. “As pessoas não querem apenas seguir uma figura religiosa. Elas querem sentir que ele é parte do mesmo mundo, que tem laços culturais com elas”, explica. “A ideia de que o Papa possa ser primo distante da Madonna cria um vínculo emocional curioso, quase como se dissesse: ‘Ele é um de nós’.”
O que se observa, segundo Daniela, é uma tendência contemporânea de sacralização do pop e humanização da religião. “Em vez de uma autoridade distante, o Papa vira um personagem de uma trama genealógica que poderia ser parte de uma série da Netflix.”
Madonna e Justin Bieber: o que se sabe das linhagens?
Madonna, nascida Madonna Louise Ciccone, tem ascendência italiana por parte de pai (família originária da região de Pacentro, na Itália) e francesa por parte de mãe. Ela mesma já visitou o vilarejo de seus ancestrais e financiou a restauração de uma antiga igreja da região.
Justin Bieber tem origem germânica e franco-canadense, com raízes na região de Ontário e Quebec. Seu avô, George Bieber, tem registros na Igreja Católica do Canadá, mas não há confirmação de laços nobiliárquicos nem relação documentada com famílias italianas.
Análise: mito genealógico ou desejo coletivo?
Segundo o historiador francês Jean-Paul Giraud, especialista em narrativas genealógicas medievais, a associação de líderes religiosos com nobreza ou celebridades não é nova. “Durante séculos, Papas e Reis eram retratados como descendentes de figuras bíblicas ou de César. Agora, o que temos é a versão pop disso.”
Giraud vê essas histórias como fábulas contemporâneas, com função social semelhante à das lendas antigas: “Elas tentam explicar o presente com base no passado — mesmo que com fundamentos frágeis”.
A ideia de que o Papa Leão XIV tem algum grau de parentesco com Madonna ou Justin Bieber é, na melhor das hipóteses, uma curiosidade de banco de dados, e na pior, uma fantasia gerada por algoritmos e filtros culturais. Mas isso não impede que continue encantando milhões de pessoas, que veem no cruzamento entre fé e fama uma forma de se reconectar com o mundo espiritual — e com a cultura que consomem diariamente.
Afinal, em uma época em que a religião disputa atenção com o entretenimento, talvez a viralização de uma suposta “árvore genealógica pop-vaticana” diga mais sobre o espírito do tempo do que sobre a real ancestralidade de um Papa.
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