Odete Roitman continua viva. Não só nas reprises da televisão ou nos memes que circulam a cada escândalo político — mas como uma categoria de poder. Em 1988, ela entrou para o imaginário brasileiro como a vilã definitiva de Vale Tudo. Rica, racista, moralista e cruel, representava uma elite que se julgava superior ao país que a sustentava. Em 2025, a TV Globo decidiu trazê-la de volta no reboot da novela, agora interpretada por Débora Bloch. Mas a personagem não volta apenas para entreter. Ela volta para nos lembrar: o poder muda de roupa, mas não de lógica.
Se antes usava pérolas, passaporte europeu e desprezo explícito pela população brasileira, a nova Odete veste alfaiataria minimalista, fala baixo em inglês fluente, frequenta fóruns internacionais e manipula redes sociais com precisão cirúrgica. O que une as duas versões é o que Michel Foucault chamou de microfísica do poder: a capacidade de produzir dominação não por meio da força física, mas por mecanismos simbólicos, disciplinares e discursivos.
Odete nunca precisou gritar. Ela comandava com gestos, olhares e frases curtas — performando a autoridade com tanta naturalidade que parecia inata. Mas poder não é essência. É construção social. É performance sustentada por estruturas. E Odete sempre soube disso.
O que ela nos ensina — e continua ensinando — é que o poder se manifesta em camadas, de forma difusa, adaptando-se às condições do tempo. A personagem foi, e continua sendo, uma aula prática sobre o pensamento de Antonio Gramsci: o verdadeiro poder não é aquele que se impõe pela força bruta, mas o que se naturaliza, se torna consenso, se apresenta como ordem, moral e normalidade.
O poder como performance: da dominação à manipulação
Na versão original, Beatriz Segall interpretou uma Odete que misturava aristocracia decadente com discurso de pureza moral. Ela era brutal em sua hipocrisia. Condenava a corrupção dos pobres, mas legitimava as falcatruas das elites. Sua retórica era sempre moralizante — como se fosse a guardiã da ordem, da família, do bem.
A versão de 2025 é ainda mais perigosa. Mais sofisticada. Mais contemporânea. Ela não precisa mais declarar ódio ao Brasil — ela molda o país em silêncio. Comanda grupos empresariais, financia campanhas, circula por conselhos e institutos. É a Odete adaptada ao capitalismo da vigilância. A mulher que internalizou o algoritmo.
Byung-Chul Han fala em seu ensaio Psicopolítica que, no neoliberalismo, o poder não reprime: ele seduz. A nova Odete é a face sedutora do autoritarismo. Usa o discurso da eficiência, da liberdade de mercado, da responsabilidade fiscal e do “mérito” como escudo para manter os mesmos privilégios — agora sem culpa e com melhor marketing.
Ela não grita. Ela influencia.
Dez lições de poder que Odete nos deixa — e que seguimos ignorando
1. Poder não se discute, se exerce.
A Odete de 1988 e a de 2025 têm em comum o gesto seco da autoridade. Elas não pedem. Determinam.
2. Controle é mais eficiente que violência.
Foucault escreveu que o poder moderno não se mostra — ele se infiltra. Odete sabia disso muito antes dos manuais de gestão.
3. O discurso moral é a arma mais perigosa da elite.
Odete condenava os outros por aquilo que praticava. Como muitos líderes atuais, ela criminalizava o outro para justificar seus privilégios.
4. Família é uma estrutura de dominação.
Ela usava o filho Afonso como peça estratégica. A nova versão faz o mesmo com netos e aliados. O afeto é instrumento.
5. A imagem vale mais que a verdade.
A nova Odete não precisa ser boa — basta parecer racional, elegante, discreta. É a lógica das aparências como fachada de dominação.
6. Arrependimento é erro de cálculo.
Ela nunca recua. Quando pega em contradição, muda o jogo. Nunca o discurso.
7. Quem manda não divide o trono.
Para Odete, aliança é tática, não afeto. Poder real não se compartilha.
8. O controle do tempo é forma de poder.
Ela fala quando quer, impõe pausas, silencia ambientes. O tempo gira em torno dela.
9. O poder sempre se apresenta como racional.
Ela nunca parece passional. Suas ações são calculadas. Sua frieza é seu argumento.
10. A morte não encerra um sistema.
Odete morreu em 1988, mas seu espírito sobrevive em cada fala autoritária disfarçada de gestão. Ela virou linguagem.
Odete é Brasil
Rever Odete Roitman, em qualquer versão, é reencontrar o país. Ela é a síntese da elite que diz odiar o Brasil porque conhece demais suas entranhas. Ela é a senhora que humilha a doméstica, o empresário que esnoba a Justiça, o político que despreza a democracia — e o gestor que precariza em nome da “eficiência”. Ela é, como escreveu Eliane Brum, a “cara do Brasil que não se enxerga no espelho”.
Débora Bloch, com sua entrega elegante e dura, não faz uma caricatura da Odete clássica. Ela faz outra Odete: adaptada ao mundo do capital de influência, da comunicação não verbal, do poder que circula entre apps, planilhas, reuniões e alianças invisíveis. Beatriz Segall nos deu a vilã que merecíamos em 1988. Débora nos entrega a que precisamos enfrentar em 2025.
Ambas são Odete.
Ambas são lições.
Ambas ainda comandam.
E nós seguimos fascinados. Porque, no fundo, talvez ainda estejamos esperando que alguém — com voz fria, olhar de gelo e moral afiada — nos diga, sem hesitação:
“Vocês sabem com quem estão falando?”
*Fernanda Cappellesso é jornalista e publicitária, mestre em Ciências Políticas pela Universidade de Brasília e especialista em marketing político e comunicação de poder. Atua como repórter, editora e estrategista de conteúdo multiplataforma.
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